Estamos iniciando o Tempo Comum na nossa liturgia, que se estenderá por 34 semanas, com a interrupção na quarta-feira de cinzas e a retomada após o domingo de Pentecostes. Por tempo comum, entendemos o período litúrgico em que celebramos o mistério de Cristo em sua totalidade, não nos detendo em aspectos particulares, como a sua encarnação no Natal, e a sua paixão, morte e ressureição, na Páscoa. O Tempo Comum envolve o cotidiano da vida, marcado não somente pelo chronos – tempo do relógio, mas pelo Kairós, tempo da graça divina. A espiritualidade deste ano é alimentada pela meditação do Evangelho de Mateus, que apresenta Jesus como o mestre da justiça e nos convida a buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e o resto virá por acréscimo (Cf. Mt 6,33). Neste segundo domingo, a liturgia propõe um texto do evangelista João, ainda em continuação à manifestação do Senhor celebrada na Solenidade da Epifania, domingo passado. A partir do próximo domingo, faremos a leitura semicontínua do Evangelho de Mateus.
O Evangelho de hoje apresenta Jesus pelo testemunho de João Batista, que afirma duas vezes: “eu não o conhecia” (vv. 31 e 33). O verbo conhecer na Bíblia não significa simplesmente saber, ter ciência de algo, mas ter experiência, ter comunhão, ter profundo amor. Conhecer quem é Jesus é ter compromisso com a sua missão, amá-lo acima de tudo. João Batista passará do não-conhecimento à experiência de vida com Jesus. O evangelista João não identifica a quem se dirige a palavra do Batista, qual seria o seu auditório. Com isto, sugere que o testemunho de João Batista sobre Jesus se destina a todas as pessoas de todos os tempos e lugares do mundo.
João Batista apresenta Jesus com três títulos: Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (v. 29); aquele que batiza com o Espírito Santo, não somente com água (v. 33); e o Filho de Deus (v. 34). Ele progride nas etapas do conhecimento de Jesus: parte do não conhecimento, passando pela apresentação de Jesus como o Messias sofredor, depois como o santificador e culminando no testemunho de que Jesus é o Filho de Deus.
A palavra cordeiro, usada por João apresentando Jesus, em aramaico é talya, e também significa servo. Aplicada a Jesus, evoca duas sugestivas imagens do primeiro testamento: a do “servo sofredor”, representado especialmente no quarto cântico do servo do profeta Isaías, que como cordeiro inocente é conduzido ao matadouro (Cf. Is 52,13-53,12), assumindo o pecado do seu povo para realizar a sua expiação; e a outra imagem recorda o cordeiro pascal, símbolo da ação de Deus libertando o seu povo da escravidão no Egito (Cf. Ex 12,1-28). As duas imagens sugerem que Jesus veio para nos libertar, veio para exterminar “o pecado do mundo”, no singular. Na perspectiva do evangelista João, o pecado é a recusa da proposta de vida que Deus ofereceu à humanidade. Há resistência a essa proposta, já manifestada no prólogo do seu evangelho, ao dizer que o mundo rejeitou a palavra enviada pelo Pai (Cf. Jo 1,10-11). Jesus é o cordeiro que veio realizar um novo êxodo, retirar a humanidade da terra da escravidão para a terra da liberdade dos filhos de Deus. Mas é necessário acolher o enviado de Deus.
A imagem de Jesus como santificador, que batiza com o Espírito Santo que desce e permanece sobre Ele em forma de pomba (vv. 32-33), lembra que o Pai faz sua morada estável e definitiva em Jesus. A descida do Espírito sobre Jesus manifesta a sua investidura messiânica, a sua unção, em cumprimento à profecia de Isaías, que mostra o servo como eleito de Deus, sobre quem derrama o seu Espírito (Cf. Is 42,1). Toda a ação de Jesus, segundo o Evangelho de João, é movida e impulsionada pelo Espírito que está sempre com Ele. Depois de ressuscitar, Jesus comunica esse mesmo Espírito à comunidade (Cf. Jo 20,19-23). Portanto, Jesus é o santificador porque tem e comunica o Espírito Santo recebido para recordar aos cristãos a sua prática e comprometê-los com ela. Ele foi ungido pelo Espírito para anunciar a Boa notícia aos pobres, para libertar os cativos, restituir a visão aos cegos e proclamar o ano da graça do Senhor (Cf. Lc 4,18-19).
Por fim, João Batista diz que viu e testemunha que Jesus é o Filho de Deus (v. 34). Essa afirmação significa que Deus se encarna na nossa história, se faz pessoa, arma a sua tenda entre nós e nunca mais nos abandona. Veio para nos libertar e conceder a vida em plenitude. Esse excelso testemunho de João indica que Jesus é o Filho porque gerado pelo Pai, que transmite à humanidade essa vida divina recebida, para que as pessoas possam cumprir o projeto de Deus.
A Igreja valorizou muito a apresentação de Jesus como Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, a ponto de incluir as palavras de João Batista no rito da comunhão, na apresentação do pão partido, um pouco antes de recebermos o corpo do Senhor: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”; respondemos que “não somos dignos de que Ele entre em nossa morada, mas confiamos que uma palavra sua nos salvará, repetindo a frase do centurião romano (Cf. Mt 8,8). A missão de Jesus é não somente perdoar o nosso pecado, mas eliminá-lo. Para o Pe. Pagola, “pecar é não aceitar Deus como Pai e, consequentemente, não aceitar a fraternidade que Deus quer ver implantada entre nós” (O Caminho Aberto por Jesus – João, p. 38). Como seguidores de Jesus, somos comprometidos a lutar cotidianamente para superar o pecado que destrói a beleza da nossa vida.
+Dom Jeová Elias
Bispo Diocesano