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Jesus tem sede de amor pelas pessoas

Neste terceiro domingo da Quaresma, a liturgia traz um texto do Evangelho de João pondo em destaque a água com seu simbolismo, recordando o dom do Espírito que recebemos no sacramento do batismo. Essa temática continuará em destaque nos próximos domingos, pois a Quaresma é tempo catecumenal, isto é, de preparação imediata para celebrar o sacramento do batismo e também de convite a vivenciar melhor o batismo recebido. Hoje temos um longo texto, com uma versão abreviada, a que comentarei.

João descreve o encontro de Jesus com uma mulher à beira de um poço, em Sicar, na região da Samaria. No tempo de Jesus a relação entre judeus e samaritanos era difícil, havia malquerença recíproca. Os judeus desprezavam os samaritanos por não serem “puro sangue” judeu, ao se casarem com estrangeiros. Eram considerados hereges quanto à pureza da fé no Deus de Israel. Os samaritanos, por sua vez, também tinham desprezo semelhante pelos judeus. Jesus rompe os preconceitos ao se encontrar com uma mulher samaritana. O cenário do encontro é um poço. O poço evoca algumas cenas do primeiro testamento: lembra onde foi encontrada Rebeca, futura esposa de Isaac (Cf. Gn 24,13ss); recorda ainda o local onde Jacó se encontrou com Raquel (Cf. Gn 29,1-14); e também o local que Moisés encontrou as filhas de Jetro, entre as quais Séfora, sua futura esposa (Cf. Ex 2,16-21). Naquelas cenas as pessoas que acorriam ao poço estavam em busca de água para saciar a sede dos animais. Na cena descrita pelo evangelista João é Jesus quem tem sede, ao meio dia, hora que recorda a sua crucifixão, quando dirá: “tenho sede” (Cf. 19,28).  A cena de Jesus com a mulher à beira do poço pode ser um símbolo da ida de Deus/esposo ao encontro do povo/esposa infiel, oferecendo a possibilidade do verdadeiro amor, da vida em plenitude. A mulher, que não tem nome, representa a humanidade que busca saciar sua sede.

Para os judeus, o poço simbolizava a Lei, com o sistema religioso vigente, e também a sabedoria. Contudo, essas instituições não correspondiam à sede de vida plena do povo. Esse poço era insuficiente para saciar a sede daqueles que o procuravam. Ao mencionar os cinco maridos da mulher, Jesus (Cf. Jo 4,18), provavelmente, refere-se aos cincos deuses dos samaritanos (Cf. 2Rs 17,29-41), incapazes de saciar a sede de vida plena. A mulher deseja uma água que sacie para sempre a sua sede (v.15). Jesus promete dar uma água que saciará definitivamente a sede da humanidade (v. 14).   A vida plena não se encontra na Lei, nem em outras divindades, mas em Jesus, a verdadeira sabedoria de Deus.

João inicia o texto deste domingo contextualizando a cena, que ocorre na região de Samaria, numa cidade chamada Sicar, onde ficava o poço de Jacó. Diz que Jesus estava cansado e sentou-se junto ao poço. Também registra a hora: era meio-dia (vv. 5 e 6). Chegou uma mulher para retirar água do poço e Jesus dialoga com ela, rompendo os costumes de então. Esse diálogo de Jesus tem sua plena compreensão à luz do mistério pascal, do dom sem limite da sua vida na cruz. São muitos os paralelos entre a cena descrita por João e as narrativas sobre a paixão de Jesus: a hora, meio-dia, lembra a mesma do julgamento (Cf. 19,13-24); Jesus que se senta na beira do poço, lembra o gesto de Pilatos fazendo Jesus sentar-se para ser julgado (Cf. Jo 19,13); o pedido de Jesus: “dá-me de beber” (v. 7),  que recorda a sua afirmação, antes de morrer na cruz: “tenho sede” (Cf. 19,28).

O cardeal português José Tolentino inicia o seu livro Elogio da Sede, contendo as meditações do retiro realizado pelo papa Francisco e os membros da cúria romana em 2018, utilizando o texto do encontro de Jesus com a samaritana. Ele destaca que a hora em que Jesus está sentado à beira do poço e no tribunal de Pilatos é central, determina a passagem de uma jornada a outra da vida. Não representa somente uma cronologia, mas protagoniza e inscreve em nós o tempo da salvação. Para ele, “mesmo que o relógio marque outras horas, muitas vezes na nossa vida é meio-dia(…) O instante exato em que estamos é meio-dia. Sempre que nascemos e renascemos no encontro com a Palavra é meio-dia. Sempre que nos dispomos à escuta profunda da nossa sede é meio-dia(…) No entusiasmo do riso ou no desamparo de tantas noites e lágrimas, quando sentimos estar descendo uma íngreme escada sem corrimão: pode ser meio-dia (…) Sempre que deixamos que Jesus nos dessedente, é certamente meio-dia (O elogio de Sede, p. 18-19).

Tolentino explica também o que significa Jesus sentar-se sobre o poço. As ações de Jesus nos Evangelhos têm um sentido teológico. Sentar-se significa ensinar, pois os mestres sentavam-se para ensinar os seus discípulos (Cf. Mt 5,1;13,1-2; Mc 4,1;9,35; Lc 5,3; Jo 6,3). Também é sinal da majestade divina (Cf. Dn 7,9). Quando vier na sua glória, Jesus sentará no seu trono para fazer cumprir a justiça do Reino (Cf. Mt 25,31). Mas o gesto de sentar-se recorda ainda os mendigos à beira da estrada que pedem misericórdia (Cf. Mt 20,31). Conforme Tolentino, também Jesus  coloca-se como um mendigo à beira do poço. Tem o corpo cansado, gasto na doação ao cuidado amoroso dos outros, queimado pelo sol, um corpo entregue por amor, que também quer ser amado e ajudado. “Não é só o homem que é mendigo de Deus. Em Jesus, Deus também se apresenta como mendigo do homem (Elogio da Sede, p. 17-18). Essa imagem contrasta com a imagem recorrente da onipotência divina, de Deus todo poderoso. Precisamos, conforme o teólogo português, purificar nossas imagens de Deus. Jesus vem procurar-nos no esvaziamento da majestade, com sua fraqueza. Ele nos ajuda não em função da sua onipotência, mas em função da sua fraqueza (Elogio da Sede, p. 20). Por ter sofrido como nós, torna-se solidário diante da nossa dor e busca saná-la.

João fala da sede de Jesus e da sede da samaritana. Diz que Jesus pede de beber, mas é Ele que dá a beber. O texto não apresenta a mulher tirando água e oferecendo a Jesus, mas pedindo que Jesus sacie a sua sede, deixando o seu cântaro e correndo à cidade para anunciar que encontrara o Messias (vv. 15 e 28). A sede de Jesus é de entregar o seu espírito, de comunicá-lo à humanidade. Essa sede se concretiza na cruz e plenifica-se no Pentecostes, conforme São João (Cf. Jo 20,22). Conforme o cardeal Tolentino, citando outro autor, “a sede de Jesus é uma sede de amor pelas pessoas tal como são, com a sua pobreza e as suas feridas, com as suas máscaras e os seus mecanismos de defesa e com toda a sua beleza. A sua sede é que cada um de nós – “grande” ou “pequeno”, pouco importa – possa viver plenamente e experimentar o máximo de alegria. A sua sede é romper as cadeias que nos trancam na culpa e no egoísmo, impedindo-nos de avançar e de crescer na liberdade interior. A sua sede é libertar as energias mais profundas que se escondem em nós para que possamos nos tornar homens e mulheres de compaixão, artesãos da paz como Ele, sem fugir do sofrimento e dos conflitos do nosso fragmentado mundo, mas tomando o nosso lugar e construindo comunidades e lugares de amor, de maneira a acender uma esperança nesta terra” (Elogio da Sede, p. 78).

+Dom Jeová Elias

Bispo Diocesano

 

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