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”A vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15)

São Lucas inicia o texto de hoje com o pedido de alguém, que sobressai no meio da multidão, para que Jesus peça ao seu irmão que reparta a herança com ele (v. 13).  Esse alguém não tem a identidade revelada por Lucas, sinal de que representa tantas pessoas sedentas de justiça. O texto dá a impressão de que Jesus faz pouco caso do assunto: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens? ” (v. 14). Certamente, ninguém. Contudo, na parábola que segue ao pedido está a resposta de Jesus advertindo quanto a precaução com todo tipo de ganância (v. 15). Ele não fica indiferente diante da questão, vai à raiz do problema: o acúmulo desnecessário dos bens. A recusa em partilhar é sinal de ganância do irmão, que se priva do sentido verdadeiro da vida, e priva o outro de usufruir dos bens a que tem direito e que lhe são negados.

Naquele tempo, existiam na Palestina dois modelos econômicos contrastantes: o modelo do campo, marcado pela solidariedade e partilha, e o das cidades, marcado pelo acúmulo dos bens, pela lei do mais forte. O sistema da cidade contava com o apoio dos fariseus, acusados por Lucas de serem amigos do dinheiro (Cf. Lc 16,14). Jesus se identifica e defende os valores das aldeias. O homem que o interpela pertence ao sistema da cidade. Jesus nos adverte quanto ao cuidado com o acúmulo de muitas coisas.

Para ilustrar a sua preocupação com o acúmulo de bens, Jesus contou a parábola de um homem rico que teve uma grande colheita. Provavelmente era um grande latifundiário, considerado “afortunado”, que explorava sem piedade os camponeses, mas para Jesus não passava de um insensato. Esse homem, que já era rico, tem uma colheita abundante e reflete sobre o que fazer com ela. A parábola contém apenas um personagem, que se basta a si mesmo: o homem rico. Ele não tem nome, não tem uma descrição física, não tem rosto. Parece que ele não tem esposa, não tem filhos, não tem irmãos, não tem amigos, não tem trabalhadores, não tem vizinhos… é um ser profundamente egoísta, demonstrado pelo pronome possessivo “meu” destacado seis vezes no texto. Ele pensa consigo, fala consigo e se preocupa somente com o seu bem-estar. Na vida desse homem, além dele, cabem somente seus pertences: seus celeiros, suas colheitas, suas terras. Pensa em usufruir sozinho dos bens produzidos: em descansar, comer, beber e aproveitar. Com certeza, todo o seu patrimônio foi construído com o trabalho dos outros. Quem plantou? Quem colheu a produção abundante? Quem demolirá os celeiros velhos e construirá os novos? Quem irá transportar a colheita aos seus celeiros? Sozinho esse homem não conseguiria fazer tudo. Sua riqueza foi acumulada com o trabalho dos pobres, que não cabem no pensamento dele. Para esses nada sobra. Parece que eles nem existem.

O personagem da parábola ilustra muito bem o sistema econômico que sobressai em quase todo o mundo: o capitalismo.  Nele triunfa o indivíduo solitário, livre, mas só, condenado a salvar-se sozinho e enfrentando milhões de competidores[1]. Escutamos repetidas vezes, nos discursos de certos candidatos políticos, a defesa de uma economia que faça o bolo crescer para, depois, distribuí-lo. Esse bolo sempre está crescendo, mas nunca chega à mesa dos pobres. Nesses anos em que fomos assolados pela pandemia, cresceu assustadoramente a riqueza nas mãos de poucos, e aumentou vergonhosamente a miséria de milhões de seres humanos. A riqueza, produzida às custas do sofrimento de tantas pessoas, ficou concentrada nas mãos de poucos. A cada ano aumenta no nosso país a produção de grãos, mas aumenta também a fome de milhões. Os grãos produzidos no Brasil são comercializados e alimentam cerca de 800 milhões de pessoas no mundo, mas não alimentam grande parte dos nossos concidadãos. Novamente o Brasil retorna ao mapa da fome, de onde tinha saído em 2014. São mais de 33 milhões de seres humanos que não têm acesso à comida em quantidade e qualidade que garantam a dignidade de suas vidas[2].

O nosso querido papa Francisco defende que a economia esteja a serviço da vida dos povos e não da exclusão e da desigualdade. Uma economia que não vise à acumulação da riqueza nas mãos de poucos ao custo da depredação da natureza, mas que cuide de zelar para que os bens da criação possam chegar a todos, favorecendo desde as crianças e jovens até  os adultos e idosos no desenvolvimento das suas potencialidades e no gozo de uma vida digna. Isto não é somente desejável, mas possível, considerando que há recursos disponíveis no mundo. Contudo, o sistema econômico em vigor impede a sua justa exploração e destinação. Para o papa, a economia deveria ser a arte de administrar adequadamente a casa comum, que é o mundo inteiro (Cf. EG n. 206), e não um mecanismo de acumulação de riquezas, como lembrou no II encontro com os movimentos populares na Bolívia.

Jesus conclui a sua parábola mostrando a insensatez, ou ilusão do homem rico. Ele pensa que tudo lhe pertence, que pode usufruir de tudo e viver indefinidamente. Mas nem mesmo a vida é sua. Ele não pode determinar os dias de sua existência: ainda nesta noite, pedirão de volta a vida dele (v. 20). “A vida humana é um instante no fluir do tempo. Mas este instante é de importância absoluta para mim: é o meu instante. (…) posso tomar medidas para vivê-lo plenamente. Mas dele não sou senhor absoluto. Há vidas que são totalmente insignificantes” (Rocha, frei Mateus, Quem é este homem?, p. 91). Provavelmente, o homem rico da parábola não deixou boa lembrança, viveu uma vida insignificante e não viverá a plenitude da vida eterna, pois no céu não cabem as pessoas egoístas: elas se bastam! Aquele homem não levará e nem deixará saudades, pois somente quem ama e foi amado sente saudade. Parece que ele se fechou ao amor.

+Dom Jeová Elias Ferreira

Bispo Diocesano


[1] Brighenti, La Iglesia perpleja, 21.

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