InícioReflexão Bíblica''A Palavra se fez carne e habitou entre nós'' (Jo 1,14)

”A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)

Depois de quatro semanas de preparação e de alegre expectativa, celebramos o Natal do Senhor. Hoje o nosso coração está exultante: Deus jamais abandona seu povo. Ele envia seu Filho, revestido da nossa fragilidade, para dar sentido à nossa caminhada. O Natal é a festa da encarnação de Deus. Não é simplesmente a recordação de um fato histórico importante, com a celebração do aniversário natalício de alguém que marcou a história da humanidade, mas um fato inaudito na nossa caminhada. Deus se faz humano, se faz pequeno, entra na nossa história não como um ser extraterrestre. Ele se aproxima de nós na ternura de uma criança. Hoje o contemplamos no menino entregue carinhosamente à humanidade, que ergue os seus bracinhos para ser acolhido e abraçado por nós. Como não ficar cheios de ternura diante de uma criancinha que nos estende os braços? Para o escritor Rubem Alves, “Deus cansou-se de ser Deus na solidão dos céus infinitos e concluiu que era muito melhor ser homem, ainda que nascendo entre os bichos, ainda que tendo de morrer. Deus tornou-se homem, revelando que não existe coisa mais alta no universo que ser homem e mulher” (Sete Vezes Rubem, p. 449). Esta alegria que hoje experimentamos e celebramos se estenderá por 8 dias, como se fosse um dia mais longo, até a solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, no dia 1º de janeiro. E o tempo litúrgico do Natal se prolongará até a Festa do Batismo do Senhor, que ocorrerá dia 9 de janeiro.

A Missa do dia de Natal traz para nossa reflexão o prólogo do Evangelho de São João. Provavelmente era um hino de uso coletivo na comunidade primitiva, para manifestar a fé em Cristo como Palavra viva de Deus, sua procedência divina, sua ação no mundo e na história, concedendo aos homens que o acolhem a possibilidade de tornarem-se “filhos de Deus”[1].

O texto começa com a expressão “no princípio”, o que nos remete às primeiras palavras da Bíblia, ao relato da criação: “no princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). O que João irá narrar sobre Jesus está relacionado com a obra da criação ou recriação divina. Ele plenifica a obra da criação e devolve a beleza da vida ao ser humano e às demais criaturas de Deus.  O projeto divino descrito na narrativa da criação foi desmontado com o pecado humano, mas Deus o recupera na pessoa de seu Filho Jesus Cristo. Ele é o coroamento da criação divina. Nele contemplamos o projeto ideal de ser humano, o modelo para nós, a meta final da criação.

O texto de São João afirma a fé da comunidade primitiva na existência de Jesus junto ao Pai e ao Espírito, desde toda a eternidade, antes da criação. Diz que, num determinado momento histórico, Ele armou sua tenda entre nós, manifestando sua glória, que recebera do Pai (v. 14). Ele estava junto ao Pai como Palavra, e se encarna, assume a condição humana. O mistério divino se torna compreensível, pode ser escutado. Mais do que escutado, pode ser visto, tocado e tocar a nossa vida. Veio encontrar-se com todas as pessoas para que se descubram amadas e se unam a Ele (Papa Francisco, Admirável Sinal, n. 1). A nossa fé não é uma abstração, é relação tátil, como afirma o cardeal José Tolentino: “no jogo da fé expomos o nosso corpo como Deus expõe o seu; tocamos e somos tocados, num encontro sem armaduras nem artifícios. A presença é sempre reclamada por inteiro. E as presenças que mutuamente se entregam (a de Deus e a nossa), inauguram uma história no instante presente” (A Mística do Instante, p. 44-45).   Conforme João, Jesus veio para o seu povo, mas os seus não o receberam (v. 11).

No Natal celebramos o mistério de um Deus que se torna humano, sem deixar de ser divino, tem carne e ossos, vem ao nosso encontro desprovido de majestade, em tudo é semelhante a nós, menos no pecado. Que nos convoca a estabelecer novas relações humanas e com os outros seres da criação divina. Que nos convida a tocar a sua carne na carne sofredora do irmão (Cf. Evangelii Gaudium n 270). Mas o mistério da encarnação de Jesus sofreu incompreensões nos primeiros séculos, inclusive com o surgimento de algumas heresias cristológicas, que negavam sua humanidade, ou suas duas naturezas – a humana e a divina, ou a existência de uma única pessoa: a divina, em duas naturezas. São temas complexos, que a Igreja foi aprofundando e clareando ao longo da sua história, até a profissão de fé do credo Niceno-Constantinopolitano, que afirma: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E por nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, e se fez homem”.

O mistério do Natal nos motiva a estabelecer novas relações, a sair de nós e ir ao encontro do outro (Cf. Evangelii Gaudium n. 87), a superar o medo de sermos invadidos (Cf. EG n. 88). O papa Francisco constata a sede atual do sagrado, mas nos adverte quanto ao risco de saciá-la nas propostas alienantes, ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro (Cf. EG n. 89).  Não obstante o desejo que algumas pessoas alimentam de um Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, o mistério da encarnação do Filho de Deus nos convida a relações humanas, “a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com os seus sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa, permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura” (EG n. 88). O papa constata que a piedade popular consegue viver a fé concreta na relação com Jesus, com os santos, com Maria, que têm carne, têm rostos. Fé tátil: toca, se emociona, se deixa tocar por Deus e pela dor da pessoa que sofre (Cf. EG n. 90). Francisco nos convida “a descobrir Jesus no rosto dos outros, na sua voz, nas suas reivindicações; e aprender também a sofrer, num abraço com Jesus crucificado, quando recebemos agressões injustas, sem nos cansarmos jamais de optar pela fraternidade” (EG n. 91).

Queridos amigos e queridas amigas, no Natal resplandece intensamente a Luz que ilumina nossa vida e renova a nossa esperança. O nascimento de Jesus inunda nossos olhos de uma luz nova, a luz do amor, que ilumina sem cessar nossa caminhada e nos encoraja na construção de um mundo melhor. Como afirma o papa Francisco, “cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus” (Evangelii Gaudium n. 272).

+Dom Joevá Elias

Bispo de Goiás


 

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