O Evangelho deste domingo liga os últimos versículos do capítulo 9 aos primeiros 8 versículos do capitulo 10 de Mateus, depois de constatar que Jesus percorria todas as cidades e aldeias, ensinando em suas sinagogas, proclamando a boa nova do Reino e curando todo tipo de enfermidades e doenças (Cf. Mt 9, 35). Jesus não ficava parado, ia ao encontro das pessoas, tomava conhecimento do que ocorria com elas, não era indiferente diante da dor que sofriam.
O primeiro verbo do texto de hoje é ver. Mateus narra: “vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (v. 36). Ele vê o sofrimento da multidão, não fica indiferente diante da dor do seu povo. Nosso Deus não é insensível diante da dor. Já no primeiro testamento, no livro do Êxodo, aparece Deus sensível à dor do seu povo escravo no Egito: vê o seu sofrimento, escuta o seu clamor e desce para libertá-lo (Cf. Ex 3,7). Os olhos de Deus nunca se afastam de quem sofre. Conforme o papa Francisco, “A compaixão é também a linguagem de Deus. Na Bíblia, foi Deus quem disse a Moisés: ‘Vi a dor do meu povo’ (Ex 3,7); é a compaixão de Deus que envia Moisés para salvar o povo. Porque o nosso Deus é um Deus de compaixão, e a compaixão é, podemos dizer, a fraqueza de Deus, mas também a sua força. O que Ele nos dá de melhor: porque foi a compaixão que o moveu a enviar-nos o Filho. É uma linguagem de Deus, compaixão”[1]. Como o Pai, Jesus vê o sofrimento do povo. Ele nunca ficou indiferente diante da dor das pessoas. O olhar amoroso de Jesus é reflexo do olhar do Pai. O olhar de Jesus percebe que as pessoas não são culpadas pelos seus sofrimentos, que elas são vítimas das diversas injustiças e do descaso das autoridades políticas e religiosas, para as quais os sofrimentos eram consequência dos seus pecados.
Jesus compara essas pessoas sofridas a ovelhas abandonadas por seus pastores, por seus líderes políticos e religiosos. Constata ainda que há carências de trabalhadores para a colheita. Faltam trabalhadores e faltam pastores comprometidos. Diante do sofrimento das multidões, Jesus sente compaixão. A palavra compaixão significa sofrer com, sentir a mesma dor que o outro sente. A dor que não me pertence, entra no meu coração. O sofrimento do outro me comove. Outro sentido para compaixão é sofrer por dentro. Nesse sentido, a palavra deriva de vísceras ou útero materno. Ter compaixão é ter um amor visceral. Conforme o papa Francisco, “Jesus não olha para a realidade do exterior sem se deixar tocar, como se tirasse uma fotografia; Ele se deixa envolver. É dessa compaixão que precisamos hoje, para vencer a globalização da indiferença. É deste olhar que precisamos quando nos encontramos perante um pobre, um marginalizado, um pecador”[2]. O papa Francisco, reiteradas vezes, advertiu quanto ao pecado da indiferença. Ele fez várias referências a uma foto, chamada “Indiferença”, de um fotógrafo do jornal do Vaticano, onde aparece uma pessoa pedinte, sentada no chão, na saída de um restaurante luxuoso em Roma, e uma cliente, vestida com elegância, virando o rosto para o outro lado. Chama a nossa atenção para não desviarmos o olhar de quem sofre, a não fecharmos a porta à compaixão. Citando Bento XVI, Francisco diz que “fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus”. Diz ainda que “cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus” (Evangelii Gaudium, n. 272).
Jesus não somente se comove, diante do sofrimento das pessoas, mas também se move. Além de sofrer com, Ele busca sanar o sofrimento das pessoas. Para isto, chama os apóstolos. Mateus narra que Jesus chamou doze e os nomeia. Esse número recorda as 12 tribos de Israel, e tem sentido de totalidade, indicando que todos somos chamados por Deus. A missão a serviço da vida plena pertence a todos e todas. Os apóstolos são capacitados e enviados por Jesus. Eles são instruídos a não entrarem em alguns lugares, mas a buscarem as ovelhas perdidas da casa de Israel (vv. 5-6). Isto não significa excluir algumas pessoas, mas dar prioridade às ovelhas perdidas e tentar recuperá-las.
Os apóstolos são enviados a anunciar que o Reino dos Céus está próximo; de fato, já está presente em Jesus. Eles devem levar essa boa notícia. Jesus não os enviou para “dar sermão” nas pessoas, ou repreender seus erros, mas para manifestar o amor de Deus e libertá-las da dor. Para o papa Francisco, “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii Gaudium, n. 176). Esse Reino, diferente dos reinos humanos, é de justiça e paz, de verdade e vida, que busca a felicidade para todos. Conforme o Pe. Pagola, “ o Reino de Deus não é só uma salvação que começa depois da morte. É uma irrupção de graça e de vida já em nossa vida atual”[3]. A evangelização comporta prioritariamente a preocupação com a vida das pessoas, não se reduz a preparar as almas para o céu. O Reino de Deus foi instaurado por Jesus, já se encontra entre nós, mesmo que ainda não seja pleno. Devemos contribuir na sua edificação. Os apóstolos devem anunciá-lo e comprovar a sua presença com os sinais que realizarão: curando os doentes, ressuscitando os mortos, purificando os leprosos e expulsando os demônios (v. 8).
Vivemos numa sociedade marcada por tanta dor e sofrimento, fruto das injustiças sociais e dos dramas humanos. Pior do que a indiferença das autoridades diante da dor das pessoas, é a tentativa de ignorar os problemas sociais que as fazem sofrer, negar os dados que retratam o desemprego, a fome, e outros flagelos que afligem os mais pobres, atingindo milhões de seres humanos no nosso país. Como discípulos de Jesus, não podemos cair na tentação de manter-nos distantes das suas chagas. Jesus quer que toquemos a carne sofredora dos outros. A evangelização requer uma paixão por Jesus e uma paixão pelo seu povo (Cf. Evangelii Gaudium, n. 268 e 270).
+Dom Jeová Elias
Bispo Diocesano
[1] https://www.osservatoreromano.va/pt/news/2019-09/compaixao-e-um-ato-de-justica.html (Consultada dia 05/06/2023);
[2] O nome de Deus é misericórdia, p. 131.
[3] O caminho aberto por Jesus – Mateus – p. 113.