Aconteceu ontem, 05/04, na Cidade de Goiás, a tradicional Procissão do Fogaréu.
De origem medieval, a Procissão do Fogaréu recorda a perseguição de Jesus Cristo pelos soldados romanos, representados por 40 farricocos. Na noite de quarta-feira, os farricocos saem descalços pelas ruas da cidade, usando vestes longas de cores vibrantes, chapéus pontudos e segurando tochas.
Um dos pontos da procissão acontece na Igreja de São Francisco de Paula, que representa o Monte das Oliveiras. No local, o bispo diocesano faz um sermão situando a celebração no contexto litúrgico.
Confira na integra o sermão de Dom Jeová Elias, na Procissão do Fogaréu.
Dai-lhes vós mesmos de comer
Queridos irmãos, queridas irmãs,
Aqui nos reunimos para reviver os últimos passos de Jesus Cristo, antes da sua condenação à morte de cruz. Acompanhamos a procissão pelas ruas da cidade de Goiás, na escuridão, lembrando a violência cometida contra um inocente, e reportando-nos ao princípio da criação, quando existia somente trevas e Deus fez a luz (Cf. Gn 1,2), sua primeira criatura, que foi plenificada no seu Filho Jesus Cristo, luz do mundo (Cf. Jo 8,12). Esta procissão, mais do que um ato para atrair turistas, é a manifestação da nossa fé em Jesus, preso sem ter cometido crime algum, e condenado injustamente à morte. Sua voz deveria ser calada, seu ideal deveria ser enterrado, pois incomodava o sistema religioso que não promovia vida e o injusto sistema político. Esta celebração deve alimentar também, em cada um de nós, o sincero desejo de nunca compactuar com as prisões de pessoas inocentes e suas condenações injustas por interesses escusos.
Diante desta igreja de São Francisco de Paula, que hoje evoca o Jardim das Oliveiras, acompanhamos a prisão do inocente Jesus Cristo, efetuada por grupos fortemente armados. O jardim, aqui representado, traz de volta ao coração o bonito projeto que Deus tinha para o ser humano, que depois de criado com tanto amor, fora colocado no paraíso para ser feliz (Cf. Gn 2,8). Também estava num jardim a sepultura onde o corpo do Senhor foi sepultado. Ela não o reteve, Ele venceu a morte e devolveu ao homem a possiblidade do paraíso, da vida em plenitude.
Estamos às vésperas da celebração do Páscoa do Senhor, que começa nesta quinta-feira, tem seu cume na celebração da vigília pascal no sábado santo e se estende durante oito dias, para podermos celebrar com júbilo a vitória de Jesus sobre a morte. Para celebrar a Páscoa do Senhor e a nossa páscoa, nos preparamos na Quaresma, durante quarenta dias. Neste tempo ressoou aos nossos ouvidos, desde a quarta-feira de cinzas, o convite de Jesus à conversão e a crer no Evangelho: convertei-vos e crede no evangelho! (Cf. Mc 1,14). Quaresma é tempo favorável para a conversão, que começa no coração de cada pessoa, mas não se restringe a atitudes individualistas, abrange todo o povo de Deus, comprometido com o seu projeto de vida. É tempo da certeza do triunfo da vida sobre a morte, e de que Jesus, vencedor da morte, sempre caminha conosco.
No Brasil, para estimular os exercícios quaresmais na perspectiva da conversão pessoal e coletiva, a Igreja realiza a Campanha da Fraternidade, propondo, a cada ano, um tema inquietante que exige a nossa conversão com urgência. A Campanha da Fraternidade questiona cada pessoa de boa vontade, mas também toda sociedade sobre a coerência com os valores anunciados por Jesus Cristo. Neste ano, pela terceira vez, apresenta o angustiante e vergonhoso tema da fome: Fraternidade e fome; e propõe o lema: “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16), mostrando a responsabilidade de todos na busca de soluções para esse problema, com um peso maior sobre as autoridades públicas. O objetivo é “sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentarem o flagelo da fome, sofrido por uma multidão de irmãos e irmãs, por meio de compromissos que transformem esta realidade a partir do Evangelho de Jesus Cristo” (Texto-base).
A fome é um instinto natural, colocado por Deus nos seres vivos, para a preservação da vida. O alimento, além de satisfazer a essa necessidade natural, também tem um valor cultural: cria relações entre as pessoas, estabelece laços de comunhão. Não ter acesso ao alimento necessário, em quantidade e qualidade para saciar a fome, é uma tragédia e também uma vergonha para a humanidade, conforme afirmou o papa Francisco numa mensagem à ONU.[1]
Nosso país, que tinha saído do mapa da fome em 2014, em vista de políticas públicas implementadas desde 1990, volta a esse mapa pouco tempo depois, em 2015, com o agravamento durante o período da pandemia da Covid-19. Em abril de 2022, 33 milhões de pessoas padeciam a dor da fome, cerca de 15,5% da população. 125 milhões convivem com a insegurança alimentar, não têm certeza sobre a próxima refeição do dia (Cf. Texto-base n. 40). São múltiplas as causas da fome, além dos fatores climáticos: a escassez de água; a injusta distribuição da terra; a política agrícola que coloca o alimento como mercadoria lucrativa, concentrando grande parte da produção na forma de commodities, no mercado internacional; o desemprego; os injustos salários oferecidos aos empregados… mas na raiz da fome está o egoísmo humano, pois há comida suficiente no Brasil para alimentar grande parte do mundo. Sobra alimento, falta justa distribuição, falta solidariedade. No dizer do saudoso Betinho, “a alma da fome é a política” (Texto-base n. 78). O papa Francisco, no II encontro com os movimentos populares, afirmou que o nosso sistema econômico é insuportável para os camponeses, para os trabalhadores, para as comunidades, para os povos e para a Mãe Terra e destacou: “Esta economia mata”[2]!Disse que por trás de tanto sofrimento sente-se o cheiro do “esterco do diabo”, citando a São Basílio de Cesareia.
A fome tem endereço, tem cor, tem idade. Sempre atinge as pessoas mais débeis. Afeta, com mais intensidade, os domicílios rurais (18,6%). A região Norte lidera quanto à insegurança alimentar (25,7% das famílias), seguida pela região Nordeste (21% das famílias). Ela atinge os sem-terra, os negros, as mulheres, os periféricos. As primeiras vítimas são as crianças, as mulheres grávidas ou em período de amamentação, as pessoas enfermas e as idosas (Texto-base n. 44). Para milhares de crianças, a merenda escolar é a única alimentação diária. O governo anterior penalizou essa camada da população reduzindo a verba para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) em 20% (Conf. Texto-base n. 92).
São tristes as consequências da fome. Ela fere a dignidade do ser humano, provoca vergonha, dor e sofrimento. Desestabiliza e desestrutura as famílias, gerando violência e promovendo a perda do sentido da vida (Cf. Texto-base n. 67). No campo da saúde, ela priva a pessoa do seu pleno desenvolvimento humano e atrai diversas enfermidades causadas pela desnutrição. Nas crianças, principais vítimas, compromete o desenvolvimento dos órgãos e o funcionamento cerebral, trazendo prejuízo à memória e a atenção, à leitura e aprendizagem, comprometendo o rendimento escolar (Cf. Texto-base n. 71).
Revivemos aqui a prisão do inocente Jesus, que será julgado e condenado injustamente à morte de cruz. Como Ele, 33 milhões de pessoas no Brasil são condenadas a padecer a fome. Milhares morrem a cada ano, em consequência da desnutrição. A fome, conforme Carolina de Jesus, não foi inventada por quem dela padece, mas pelos que têm o que comer e acumulam sem necessidade. Os gestores públicos detêm uma responsabilidade maior pela condenação de tantos irmãos à fome e à morte. Há dinheiro suficiente, há recursos técnicos necessários, há terras abundantes para produzir comida para todos. Mas alguns governantes, ao invés de destinar recursos públicos para combater a fome e alimentar os vulneráveis, destinam tais recursos às armas, ao pagamento de juros aos banqueiros glutões, que não necessitam. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável (Cf. Fratelli Tutti, n. 189). “A política mundial não pode deixar de colocar entre seus objetivos principais e irrenunciáveis o de eliminar efetivamente a fome”, afirma o Papa Francisco. (Fratelli Tutti, n. 189). Os que promovem a fome e os que não a combatem, são criminosos e serão julgados um dia no tribunal divino. O preso e condenado Jesus Cristo, que aqui recordamos, assegurou essa justiça. Ele virá como juiz. No seu julgamento dirá: “Eu tive fome e não me destes de comer, eu tive sede e não me destes de beber”. Sentenciará: “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno” (Cf. Mt 25,41-42).
Páscoa é passagem da morte para a vida; é vitória sobre tudo o que representa morte. O retrato mais feio da morte é a fome. O profeta Isaías convida as pessoas sedentas a irem receber água. Convida quem não tem dinheiro a comprar e se alimentar de vinho e leite, sem pagar (Cf. Is 55,1). Que a celebração da Páscoa de Jesus favoreça a concretização desse convite.
+ Jeová Elias Ferreira
Bispo de Goiás
[1] Francisco. Mensagem para os 75 anos da ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 16/10/2020.
[2] Francisco, papa. “Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares Vol. IV”. Brasília: Edições CNBB, 2015, 7-8, 14.