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”O pouco com Deus é muito, mas o muito sem Deus é nada”

Por Dom Jeová Elias, Bispo de Goiás

A partir deste domingo faremos uma pequena pausa na leitura do Evangelho segundo Marcos e passaremos à leitura do capítulo 6 do Evangelho segundo João, que se estenderá durante os domingos de agosto. Serão proclamados quase todos os seus 71 versículos. No primeiro domingo de setembro retomaremos o Evangelho segundo Marcos.

Hoje João apresenta o sinal da partilha do pão para uma multidão faminta, caso também narrado pelos outros três evangelistas, mostrando o seu grande valor. Conforme o evangelista João, é o 4º sinal que Jesus realizou para suscitar a fé. Um sinal é algo que aponta para uma realidade invisível. Todavia, as pessoas não entenderam, pois queriam transformar Jesus em rei, desejavam um messias poderoso e triunfalista. A ordem de Jesus para o povo sentar-se é um sinal de sua liberdade, mas parece que pretendem voltar à condição de servo.

O fato descrito ocorre no outro lado do mar da Galileia (v. 1), em um monte, para onde Jesus subiu com seus discípulos e sentou-se (v. 3), quando estava se aproximando a festa da Páscoa judaica (v. 4). O cenário descrito por João é rico em simbolismo: a menção da Páscoa recorda a libertação da escravidão no Egito; a passagem do mar da Galileia lembra a travessia do mar vermelho (cf. Ex 14,21-31); o monte lembra o local onde Deus fez a aliança com o seu povo pela mediação de Moisés (cf. Ex 24,12-18); o povo com fome lembra os hebreus famintos atravessando o deserto rumo à liberdade (cf. Ex 16,3).  A intenção de João é mostrar a inauguração de um novo tempo com Jesus Cristo. Com Ele ocorre um novo êxodo, uma nova passagem do mar para a vida com liberdade e dignidade. A subida ao monte recorda Moisés no Sinai para receber a Lei, mas indica que Jesus o supera fazendo uma nova e definitiva aliança e deixando o mandamento do amor. Recorda também o Calvário, onde culmina o gesto realizado por Jesus na última ceia, entregando o seu corpo e sangue. O pão distribuído recorda o maná do deserto e sinaliza para a Eucaristia.

João menciona uma multidão avistada por Jesus, que vem ao seu encontro. O local é deserto. Filipe é provocado por Jesus: “onde vamos comprar pão para que eles possam comer?” (v. 5b). A pergunta formulada por Jesus, e a resposta dada por Filipe: “nem duzentas moedas de prata bastariam para dar um pedaço de pão para cada um” (V. 7) ressaltam a novidade do Reino inaugurado por Jesus Cristo. Para Ele, as relações humanas devem ir além de compra e venda, devem contar com a gratuidade. Ante a proposta de comprar, feita por Filipe, que calcula os gastos, equivalentes a duzentos dias de trabalho de um operário, Jesus contrapõe doar. A lógica de Filipe lembra a dos políticos que calculam os gastos com as migalhas oferecidas aos pobres, sobretudo em tempo de calamidades, mas privilegiam os mais ricos concedendo isenções fiscais.

André, palavra de origem grega que significa humano, constata a presença de um pobre menino com cinco pães e dois peixes, mas afirma ser insuficiente para tanta gente. Esse menino, ao oferecer o pouco que tem a Jesus, lembra a generosidade dos pobres que entendem a lição da partilha, que não temem morrer de fome por não acumular. Que movidos pela fé afirmam: “o pouco com Deus é muito, mas o muito sem Deus é nada”.  Os pobres testemunham que a obra da criação só encontra seu sentido quando destinada a todos e todas. O pouco trazido pelo menino, colocado nas mãos de Jesus se multiplica.  Os pães e os peixes por Jesus abençoados são distribuídos a todos, que ficam saciados e ainda sobram doze cestos de pães (v. 13).  Ao dar graças (v. 11), Jesus reconhece que os bens criados pertencem ao Criador, que os destinou para todos os seres, não sendo lícita a sua concentração em poucas mãos. Quem os possui deve ser apenas seus administradores e pô-los a serviço de todos. Os cristãos devem ser testemunhas dessa bonita relação com os bens criados por Deus.

O sinal realizado por Jesus aponta para a Eucaristia, pão partilhado por amor, que nos compromete com a partilha da vida em favor dos irmãos e irmãs. Os gestos realizados e as palavras proferidas por Jesus, dando graças e distribuindo os pães e os peixes, remetem à instituição da Eucaristia na última ceia. A expressão “dar graças” significa eucaristia.

O evangelista João apresenta a preocupação de Jesus diante da multidão que vai ao seu encontro com fome (v. 5). Também a Igreja tem a mesma preocupação de Jesus. No nosso país, pela terceira vez, a fome esteve em destaque na Campanha da Fraternidade do ano passado, com o tema: “Fraternidade e Fome”, mostrando esse flagelo para uma multidão de brasileiros, que, mesmo com o aumento da produção de alimento a cada ano, padecem a dor da fome (cf. Texto-base da CF 2023 n. 29).

Embora haja produção de alimentos para saciar a fome de todos, no mundo 783 milhões de pessoas não têm o que comer. O nosso país obteve, em vista da implantação de algumas políticas públicas, a diminuição de 33 milhões de famintos em 2022 para 8 milhões e setecentos mil em 2023[1]. Temos capacidade para alimentar grande parte do mundo, mas a fome persiste entre nós.  Na sua raiz está o egoísmo humano que busca ganhar muito dinheiro com a comida. Sobra alimento, falta justa distribuição, falta solidariedade. No dizer do saudoso Betinho, “a alma da fome é a política” (Texto-base da CF 2023 n. 78).  Infelizmente o direito ao acesso à alimentação, garantido em lei, ainda é negado a muitos no nosso país. Conforme o papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti, “a política mundial não pode deixar de colocar entre seus objetivos principais e irrenunciáveis o de eliminar efetivamente a fome. Com efeito, quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como mercadoria qualquer, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isto constitui um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável” (FT n. 189).

A Eucaristia que celebramos, sinalizada no Evangelho de hoje, não é mero pãozinho mágico para ser contemplado e provocar emoção, mas um dom de Deus para a nossa vida. Ela é fruto do trabalho humano e da bondade divina, que para nós se torna pão da vida. Ela nos compromete com a partilha da nossa própria vida, para que todos tenham vida (cf. Jo 10,10).

Neste domingo celebramos o IV Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, em vista da proximidade da festa dos avós de Jesus: São Joaquim e Sant’Ana, nossa padroeira diocesana. Na sua mensagem para este dia, com o tema “na velhice, não me abandones” (cf. Sl 71,9), o papa Francisco aborda o sofrimento dos idosos descartados e abandonados pela sociedade, mas destaca que Deus nunca os desampara. O abandono que eles padecem ocorre em vista de opções políticas, econômicas, sociais e pessoais, que não reconhecem a dignidade infinita de cada pessoa.

Neste dia dos avós e dos idosos, agradeço a cada um deles pelo testemunho de generosidade na partilha dos seus dons, no compromisso missionário, no cultivo da memória da caminhada e na partilha da experiência de fé. Peço aos seus familiares que se empenhem no cuidado com eles e que as pessoas das nossas comunidades os visitem manifestando sua ternura e escutando suas bonitas e edificadoras histórias de fé. Deus nunca abandona os nossos idosos!

+Dom Jeová Elias

Bispo de Goiás

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