O Evangelho deste domingo narra a parábola do rico glutão e do pobre Lázaro. É um texto exclusivo de São Lucas contendo uma catequese sobre a dificuldade da relação do homem com os bens deste mundo. O escrito se dirige aos fariseus, acusados por Jesus de serem amigos do dinheiro (Cf. Lc 16,14) e viverem em função dele, e a todos aqueles que agem igualmente.
A parábola apresenta dois personagens contrastantes, que vivem nas extremidades sociais: o rico, que não tem nome, e o pobre Lázaro, nome que significa “Deus ajuda”. O rico está numa situação de abundância material: veste roupas finas e elegantes, faz festas esplêndidas todos os dias, come do bom e do melhor e esbanja. O pobre Lázaro jaz à sua porta e sequer é notado. Está cheio de feridas, que são lambidas pelos cães, considerados na bíblia como animais repugnantes e maus (Cf. nota j do versículo 21 na TEB – Novo Testamento). Ele desejava saciar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico (v. 21), isto é, os pedaços de pão usados para limpar os pratos e enxugar as mãos, depois deixados sobre a mesa (Cf. Bortolini, Roteiros Homiléticos, p. 685).
A morte nivela a todos, mas o destino, marcado por um abismo intransponível na terra, é diferente para os dois personagens. O pobre é levado para junto de Abraão, símbolo da vida eterna feliz, e o rico foi enterrado, fracassou. De nada serviram os seus bens, além de saciar os que não necessitavam deles. Aquele que não notara a presença do pobre à sua porta, agora roga que Abraão ordene a Lázaro molhar a ponta do dedo para refrescar a sua língua (v. 24), pois está sofrendo nas chamas. O rico tinha tudo, não precisava de nenhuma ajuda de Deus. Lázaro era uma pobreza total: doente, faminto, excluído e ignorado por pessoas que poderiam ajudá-lo (Cf. Pagola, O Caminho aberto por Jesus – Lucas, p. 272). Ao final, a situação dos dois se inverte.
A parábola contada por Jesus, mais do que descrever o nosso destino na eternidade, constata a realidade de exclusão em que vivem os pobres. É um retrato dos muros erguidos para impedir o ingresso dos pobres que lutam por vida digna, que não querem implorar migalhas, mas a possibilidade de ganhar o pão com dignidade. Os países mais ricos do mundo na economia de mercado dominante, que têm acesso livre a todos os territórios, são os que erguem muros para impedir o ingresso dos pobres que buscam condições de trabalho para se manterem e sustentarem suas famílias. Os Estados Unidos se destacam nesse cenário, com um muro construído na fronteira com o México, medindo mais de mil quilômetros de extensão e vigiado com rigor. Muitos pobres, inclusive do Brasil, já perderam a vida tentando penetrar nessas fronteiras instransponíveis. O último e vergonhoso caso ocorreu no final de junho deste ano, com a morte de 53 imigrantes num baú de um caminhão, asfixiados. Outros milhares morreram afogados tentando atravessar o mar rumo à Europa, fugindo da guerra, da fome e da violência. Entre os que morreram, chocou o mundo a foto de uma criança que jazia às margens de uma praia na Turquia. Esses Lázaros estarão, certamente, no seio de Abraão. Os glutões responderão por sua ganância.
O estudo de 2018 chamado “O elevador social está quebrado?”[1] da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), sobre como promover a mobilidade social, evidencia a grande dificuldade de deslocamento de classes sociais, isto é, que os filhos dos pobres, em sua grande maioria, nascem pobres, vivem pobres e morrem pobres. A isto chamam de “piso pegajoso”. Que os filhos dos ricos nascem ricos, vivem ricos e morrem ricos, chamam de “teto pegajoso”. Dois países recebem destaque negativo no nosso subcontinente: a Colômbia, como o pior país, onde seriam necessárias 11 gerações para que um descendente entre os 10% mais pobres atingisse o nível médio de rendimentos; em segundo lugar, o Brasil, que precisaria de nove gerações. As principais razões são as diferentes rendas dos salários, a diferença no nível da educação, da ocupação e do acesso à saúde.
A narrativa de Lucas não entra em detalhes sobre a vida dos dois personagens, quanto aos seus defeitos, somente destaca a condição social deles: um que vive na ostentação e outro que sofre na miséria. Para Lucas, a riqueza, independente de ser fruto do trabalho árduo, é um risco, pois os bens são dons divinos que devem se destinar a todos. Quem os possui deve administrá-los não somente em benefício próprio[2]. Conforme o Pe. Pagola, “quando a riqueza consiste em desfrutar a abundância de maneira excludente, ela não faz crescer a pessoa, mas a desumaniza, porque a vai tornando indiferente e egoísta diante da desgraça alheia” (O Caminho Aberto por Jesus – Lucas, p. 274).
O rico é indiferente, ignora a presença sofrida de Lázaro à sua porta. Pecamos não somente pelo mal que praticamos, mas pelo bem que deixamos de fazer, pelas nossas omissões, conforme rezamos no “Eu pecador”. Não é suficiente rejeitar o mal; é preciso construir juntos o bem.
O texto termina com o pedido do rico para que seja enviado Lázaro à casa do seu pai a fim de advertir os seus irmãos quanto ao risco de terem o seu destino. Tal pedido é negado, pois o ensinamento já está presente na Palavra de Deus, ignorada por muitos, que não acreditarão, mesmo que um morto ressuscite (vv. 27-31).
Com o poema de dom Helder Câmara, intitulado “Apelo a Lázaro”, concluo esta reflexão:
“Pelo Amor que tenho aos ricos
– a quem não devo julgar
a quem não posso julgar
e que custaram
o sangue de Cristo –
eu te peço, Lázaro,
não fiques nas escadas
e não te deixes enxotar…
Irrompe banquete adentro.
Vai provocar náuseas
nos saciados convivas.
Vai levar-lhes
a face desfigurada de Cristo
de que tanto precisam
sem saber e sem crer”(“Mil razões para viver”, Civilização Brasileira, p. 75).
+Dom Jeová Elias
Bispo Diocesano
[1] OCDE, Um elevador social quebrado? Como promover a mobilidade social, consultada 16 de junho de 2018. https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/broken-elevator-how-to-promote-social-mobility_9789264301085-en.
[2] https://www.dehonianos.org/portal/26o-domingo-do-tempo-comum-ano-c0/ (Consultada dia 16/08/2022).