Por: Dom Jeová Elias Ferreira
Neste tempo quaresmal, somos convidados a meditar sobre o mistério da cruz. O itinerário quaresmal tem seu cume na celebração do tríduo Pascal, em que o mistério da cruz é central. A Páscoa da cruz compõe a segunda celebração dos três dias pascais. Na sexta-feira Santa, o nosso olhar se dirige ao mártir Jesus. Movidos pela piedade popular, “nossos povos se identificam particularmente com o Cristo sofredor, olham-no, beijam-no ou tocam seus pés machucados, como se dissessem: Este é ‘o que me amou e se entregou por mim’ (Gl 2,20)” (DAp n. 265).
A cruz, de árvore da morte com a desobediência e a maldade humana, ao ter Jesus Cristo em seus braços, torna-se árvore da vida, como cantamos no hino das Laudes de sexta-feira Santa: “Ó cruz fiel, sois a árvore mais nobre em meio às demais, que selva alguma produz com flor e frutos iguais”. Ao ser abraçado por ela, o Senhor a banha com a água do seu lado traspassado, que faz renascer as novas criaturas.
Para João, a cruz não é derrota ou humilhação, mas elevação, antecipação da glória. Ao narrar o fim do ministério público de Jesus, ele afirma: “Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Em outro texto, diz: “como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o filho do homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,14-15). A cruz é a culminância do amor de Deus pela humanidade, em Jesus Cristo. É sinal de amor, de vida. Um amor que vai até as últimas consequências. O amor do crucificado/ressuscitado é ilimitado. Todos os que nele crerem terão a vida eterna (Jo 3,15). Seu amor não se esgota num povo, numa igreja, numa etnia, num gênero, mas é universal.
Contudo, não devemos ver a salvação somente no mistério da cruz, isolada de toda a vida de Jesus Cristo. A cruz é consequência da sua vida amorosa, doada, comprometida com os mais pobres. Uma vida dedicada aos excluídos, malvistos, que não eram amados pela religião da época, mas considerados como condenados por Deus em seus sofrimentos.
Por outro lado, a cruz é a reação de uma sociedade que se incomoda com o amor, que se estrutura à base da injustiça, sobretudo de uma casta social que está contente com a exploração dos menores. A cruz é a recusa ao amor que Deus oferece à humanidade em Jesus Cristo. Recusa à solidariedade, a viver a igual dignidade dos filhos de Deus.
Olhar para a cruz de Jesus Cristo é perceber que junto dele estão outros crucificados, vítimas das injustiças humanas, da desigualdade social, conduzidos de um modo inocente ao sacrifício. Como afirma o documento de Aparecida, no rosto de Jesus Cristo morto e ressuscitado, podemos contemplar o rosto humilhado de tantos homens e mulheres do nosso povo (DAp n. 32).
Somos marcados amorosamente pela cruz de Cristo. Este sinal é o primeiro símbolo que assinala a testa dos batizandos. A cruz acompanha toda a nossa existência, mas como transição no seguimento de Jesus, rumo à vitória da vida. Ela não é a nossa derrota. Para o Papa Francisco, “o triunfo do cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal” (Evangelii Gaudium n. 85).
O nosso olhar se dirige, nesse tempo marcado por tanta dor, ao crucificado. Nele buscamos sentido para a nossa vida. Foi contemplando o crucifixo na Capela de São Damião que Francisco sentiu o chamado de Deus: “Francisco, reconstrói a minha Igreja”. Ele se comovia às lágrimas diante do crucifixo e nutria um sentimento de compaixão pelos irmãos, sofrendo com eles e com Jesus Cristo, ao ponto de receber as suas chagas. Como Francisco, tenhamos o coração cheio de compaixão.
Pelo segundo ano seguido, em vista da sindemia da Covid-19, celebraremos o Tríduo Pascal com os nossos templos vazios de fiéis e cheios de dor, mas abarrotados de esperança. Na contemplação do crucificado, também deveremos vislumbrar os rostos das 266 mil vítimas fatais no Brasil, dos parentes e amigos dilacerados pela dor, dos milhares que penam em consequência da crise socioeconômica advinda e do descaso das autoridades responsáveis pela saúde pública.
Depois da contemplação da cruz, que terá o seu cume na sexta-feira santa, exultaremos de alegria com a luz do fogo novo, que triunfa sobre as trevas, no sábado santo. A cruz não retém Jesus, é passagem para a vitória da vida. Sonhemos juntos com a vitória da cruz na nossa história!
Dom Jeová Elias Ferreira
Bispo Diocesano de Goiás